Não somos máquinas…

Muito se fala sobre a separação entre o profissional e o pessoal como uma necessidade para se manter a sanidade. Não se devem levar problemas da empresa para casa, assim como não seria correto levar problemas de âmbito doméstico para a organização. No meu ponto de vista, trata-se de uma vã tentativa de transformar pessoas em máquinas. Considero quase impossível simplesmente desligar o botão da pessoa que está na empresa a partir do momento que ela deixa a organização, passando então a desempenhar somente o papel da pessoa que convive com a família e amigos. Da mesma forma, acredito ser improvável que alguém consiga entrar na organização deixando porta afora os sentimentos, as emoções e as questões relacionadas com aqueles com quem convive diariamente em outras esferas. Nós não somos máquinas, não há um botão ligar e desligar em nosso cérebro e em nossas emoções.

Lembro-me da história de um casal que se havia proposto a não levar para dentro de casa nada que os pudesse importunar. Os problemas deveriam ficar da porta para fora! O sossego da casa era sagrado. Em função das suas qualificações, o marido ficou responsável por trabalhar fora e trazer o dinheiro para o sustento da casa. A esposa seria a responsável pela organização da casa e da educação dos filhos. Cada um com os seus problemas, que não seriam discutidos no ambiente familiar para se manter a harmonia e também para que pudessem desfrutar sempre o lado bom da companhia um do outro. O papel desempenhado por um ou outro poderia ser invertido, mas a situação descrita era essa. Assim, sempre que a esposa avistava o marido retornando do trabalho meio cabisbaixo, ela avançava até o portão para dizer:
– Aqui em casa nada de problemas do trabalho, meu querido. Aqui é o nosso canto do sossego… e recebia-o alegremente com um beijo.

Sim, pensava ele, é o nosso trato. Desse modo, não compartilhava com a esposa as suas preocupações e frustrações no trabalho. Nunca lhe fizera um comentário sequer sobre a situação da empresa. Em casa se mostrava o mais solícito e alegre possível para continuar a construir a felicidade conforme acordado com a esposa, mantendo a segurança e a tranquilidade do ambiente familiar. E a esposa fazia por merecer a tranquilidade. A casa sempre estava impecável, organizada e limpa. Os filhos recebiam uma excelente educação. Frequentavam a melhor escola da cidade e tinham várias atividades extracurriculares como dança, canto e esportes. E ela, a esposa, o fazia com todo o empenho e dedicação. O seu dia também estava repleto de atividades de manhã até à noite com os problemas inerentes à atividade doméstica, que não eram poucos. Ela também não lhe dizia das dificuldades enfrentadas com as crianças na escola ou as demandas da casa. E assim, eles criaram uma bolha de tranquilidade e segurança para a família. Mas isso tudo estava somente na bolha, não na cabeça do marido.

A cabeça do pobre homem era um turbilhão de problemas, angústias, medos e insegurança. Não compartilhava com ninguém, uma vez que a condução da empresa estava sob sua responsabilidade. Como poderia compartilhar? Como poderia falar com alguém? Às vezes chegava a pensar em falar com algum colega, mas se preocupava, Se eu falar, os outros vão me achar fraco, medroso…. E assim seguia ele a sua sina. Até que teve um dia em que os problemas da empresa o atropelaram. Não havia como ocultar mais nada. A situação ficou de tal modo insustentável que a falência foi inevitável. O que fazer agora? pensava ele. Frente aos colegas e fornecedores, já estava arruinado, mas dar essa notícia em casa? Como contar para a minha esposa? Quem vai pagar a escola dos filhos?, pensava enlouquecidamente sem encontrar uma resposta. De todas as formas ele teria que ir para casa. Naquele dia, ao chegar no portão da casa, a esposa percebeu que ele estava especialmente triste. Teve vontade de perguntar o que havia acontecido, mas, como as regras por eles criadas não lhe permitiam, não disse nada. O marido a beijou e entrou. Abraçou as crianças que brincavam no jardim dos fundos da casa. Foi para o quarto como todos os dias fazia. Vai tomar o seu banho… pensou ela, mas hoje ele está muito triste… Começou a caminhar em direção ao quarto para conversar com o marido, mas foi interrompida por um estampido. Nada mais havia a ser feito.

História real.

Talvez a questão não seja a de não levar problemas para casa ou para a empresa. Não vejo nada de errado em estar no ambiente familiar e, de de repente, lembrar-me de como seria possível resolver um problema na organização. É natural, é inteligente e é produtivo. Isso passa a ser um problema quando a pessoa vive a todo o momento resolvendo os problemas da organização sem mais dedicar tempo para a família, o lazer e a diversão. Por que digo isso? Porque, da mesma forma, não há nada de errado em estar no ambiente de trabalho e pensar numa questão familiar ou mesmo programar alguma diversão extra-trabalho. Também acredito que isso seja salutar. O problema, mais uma vez, passa a ser quando alguém passa a usar os recursos da organização para atender e resolver questões particulares. Recursos esses que podem ser o tempo, os materiais ou equipamentos pertecentes à organização para a qual trabalha. Provavelmente, o ponto principal para resolver essa questão e manter a sanidade seja o equilíbrio entre uma e outra.

Por isso digo que nós não somos máquinas. Orgulho-me de pensar em questões de trabalho num domingo, porque isso me faz ver que aquilo que faço é importante para outras pessoas. Da mesma forma, sinto-me tranquilo ao comentar com um colega de trabalho sobre questões que são de foro familiar, porque isso me faz lembrar que sou humano.

Não sou máquina. E você?


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