Frente a um dilema, pense no seu lema.
We should never do something that we cannot tell our parents about or that we need to hide from our children.
(Moacir Rauber)
Numa sexta-feira, final de tarde, o Coordenador da Seção de Captação de Recursos chamou o Jorge para uma reunião após o expediente. O Jorge era o Chefe da Contabilidade encarregado da prestação de contas dos recursos públicos captados por meio de projeto. Ele foi até o gabinete do Coordenador sendo confrontado com uma notícia, que poderia ser excelente a depender dos interesses de quem a analisava. O Coordenador começou por lhe dizer que o projeto que eles estavam a terminar, também fora aprovado a Fundo Perdido (sem necessidade de devolução) em outra agência de financiamento. Uau, dois projetos aprovados… Jorge ficou feliz. Eram exatamente iguais, por isso ele logo sugeriu que poderiam reenquadrá-lo para beneficiar outros grupos de indústrias. Jorge havia pensado que talvez fosse esse retrabalho que preocupava o Coordenador. Entretanto, a questão era outra. O Coordenador pigarreou. Naquele momento entrou no gabinete o Diretor Geral que acomodou-se ao lado de Jorge. Era a segunda ou terceira vez que ele o via ao longo dos dez anos em que trabalhava na organização. O Diretor Geral foi direto ao assunto:
– O segundo projeto aprovado com o mesmo escopo desse que nós estamos finalizando terá que ser alterado. Precisamos desses recursos para a construção de um novo anexo. Assim, quero ver com vocês como nós podemos fazer para enviar a mesma prestação de contas que estamos concluindo agora para as duas fontes. Quero que tudo seja duplicado, assim nós ficamos com o dinheiro disponível para os nossos investimentos, uma vez que ele também é a Fundo Perdido…
O Diretor Geral continuou a falar-lhes sobre a sorte de que os dois projetos haviam sido aprovados dentro do mesmo ano fiscal, entre outras facilidades para que se realizasse a sua proposta. Jorge estava chocado. Não ouvia mais nada. Em dez anos nunca ouvi nada disso aqui dentro. Não pode ser… matutava. Ele sabia o que aquilo significava. Era desvio de dinheiro público. Isso é crime… gritou o seu cérebro. Mais do que isso. Todos os relatórios a serem enviados precisavam ser assinados por um contador responsável. Esse contador era ele. Era por isso que ele estava ali.
O diretor usou outros argumentos para justificar a sua proposta, dizendo que o dinheiro viera para os projetos da corporação, cabendo a eles dar-lhe o devido destino. Ele não aceitaria devolver o dinheiro, sabendo que poderia ser mal aplicado por outros. Por fim, olhando para Jorge, disse:
– Então, posso contar contigo para essa tarefa? Todos teremos nossos benefícios… disse o Diretor Geral deixando uma mensagem nas entrelinhas. Precisamos ampliar a nossa área de formação e já não temos mais espaço físico. Inclusive, precisamos contratar mais contadores… finalizou ainda olhando para o Jorge.
Jorge sabia que era possível fazer o que o diretor dizia. Para o caso em questão, as duas fontes financiadoras dificilmente cruzariam as informações. O próprio tribunal de contas não identificaria irregularidades. Entretanto, para Jorge aquilo não era certo. E tudo dependia da sua assinatura nos relatórios de prestação de contas. O que vou fazer? Assinar ou não assinar? Perguntava-se. Lembrava que assinar era um crime. Não assinar era a demissão. Eis o dilema de Jorge.
Jorge retornou cabisbaixo para a sua sala. Começou por relembrar a sua trajetória profissional. Hoje estava com 50 anos, mas trabalhara na área rural até os 24 anos. Com muito custo terminou o ensino médio e por fim, conseguiu uma bolsa de estudos para fazer o curso de graduação em contabilidade. Logo arranjou emprego num escritório contábil que prestava serviços para micros e pequenas empresas. Após seis meses de trabalho no escritório e de estudos na faculdade ele sabia que era aquilo que ele queria para a sua vida: ser contador. Mas ele queria mais. Queria ser contador numa grande organização. Queria fazer contabilidade como ciência. Esse era o seu sonho.
Desse modo, Jorge enviou o seu currículo para grandes organizações. Um dia telefonaram-lhe para marcar uma entrevista de trabalho numa grande corporação. Jorge fez a entrevista e, ao final, foi convidado para conhecer as instalações da organização que contava com mais de oitocentos funcionários só naquele espaço, mas tinha operações em outros estados brasileiros e em outros países. A corporação prestava serviços à indústria e ao comércio auxiliando na elaboração de projetos para a captação de recursos e na prestação de serviços de consultoria e de auditoria. Era um sonho para o Jorge estar ali. Para Jorge, ali se materializava toda a teoria que ele havia visto em tempos de faculdade. Ele estava encantado.
Saiu da organização nas nuvens. A ansiedade o dominava, Será que vão me chamar? Acho que foi tudo muito bem na entrevista… refletia. Duas semanas depois Jorge foi chamado a integrar a equipe de contadores daquela grande organização. Comemorou com a esposa, com os pais e mudou-se para a capital do estado. Jorge finalmente pode sentir o que era contabilidade como ciência social aplicada. Trabalhavam com grandes volumes de recursos. Jorge sentia que fazia parte de algo que funcionava, sendo relevante para si e também para a sociedade.
Dez anos já haviam se passado desde que Jorge trabalhava nessa organização. Ele crescera profissionalmente e havia alcançado a estabilidade financeira oriunda dos bons salários recebidos. A sua esposa também trabalhava na mesma organização. Tinha casa, carro e sua filha estudava num dos melhores colégios da cidade. Ele continuava a gostar daquilo que fazia e como o fazia. Foram anos excelentes. Tudo caminhava na mais perfeita normalidade. Isso até o dia de hoje. Em todo esse tempo nunca fora confrontado com uma situação tão constrangedora. Lembrava-se de pequenos arranjos feitos em prestações de contas, mas que não prejudicaram ninguém. Porém agora, na visão de Jorge, tratava-se de um crime. Mas o que fazer? Assinar e manter o emprego ou não assinar e ser demitido?
Jorge sabia que se não assinasse, ele e sua esposa seriam demitidos, além do que dificilmente ele conseguiria trabalho em outra grande organização como contabilista. O sonho de continuar na área contábil terminaria ali. Outra questão lhe surgia, Se eu não assinar os recursos terão o seu devido destino? Pouco provável… Então, por que não assinar?
Por outro lado, supondo que Jorge assinasse o relatório, como ele poderia conviver consigo mesmo depois disso? E se o tribunal de contas flagrasse o mau uso dos recursos? O que vai ser de mim diante de esposa, filha, familiares e amigos? Conjecturava.
A sexta-feira na organização estava terminando. O dilema de Jorge estava recém começando. Todas essas questões passavam pela cabeça de Jorge enquanto ele pilotava a sua moto para casa. Jorge sofria. Sentia a dor invisível da consciência. A situação o opunha àquilo que ele considerava certo. Entretanto, o bem-estar de sua família e o próprio futuro profissional estavam em jogo. Quais as consequências para ele no curto, médio e longo prazo? Eram questões para as quais ele ainda não tinha resposta.
Entre uma troca de marcha e outra pensava, Se eu assinar vai ser bom para mim? Sim, provavelmente seria, porque continuaria a fazer aquilo que era o seu sonho. Além de tudo, lembrava-se das palavras do Diretor Geral, “Todos teremos nossos benefícios…”. Provavelmente isso representaria uma compensação extra que não seria pouca considerando os valores envolvidos. Porém, caso ele se perguntasse sobre como isso afetaria a sua integridade? Seria ruim para ele.
O Jorge tinha outras questões na mente, Isso é bom ou não para a sociedade? Segundo o ponto de vista do diretor da corporação seria bom porque eles sabiam que o dinheiro seria bem investido, entretanto, para Jorge ficava a dúvida: Fiz uma vez, o que virá depois? No longo prazo isso seria nocivo.
A questão se punha cada vez difícil para Jorge que estava com a sua cabeça a girar. Pensamentos controversos. Os seus valores colocados a prova como nunca antes haviam sido. O que vou dizer ao chegar em casa para minha esposa e filha? Perguntava-se mentalmente também, Qual foi o meu compromisso como contador? Com o que me comprometi no dia em que entrei na empresa? E se isso tornar-se público? Jorge não se comprometera a colocar o seu nome e a sua função a serviço de algo que não fosse honesto e nem legal na sua interpretação. Inclusive, segundo o código de ética da sua profissão esse comportamento ensejaria a cassação da sua credencial de contabilista.
Eram tantas as perguntas e dúvidas na cabeça do Jorge que o dilema persistia: Assino ou não assino?Uma opção o manteria no emprego. A outra o jogaria fora do mercado de trabalho. Eis a questão.
A decisão de Jorge
Naquela sexta-feira ele chegou triste em casa. Encostou a moto na garagem e ficou a pensar no que faria. Seria um final de semana estranho que anunciava a chegada de tempos difíceis. Poderia ser muito fácil. Bastaria ele assinar os papéis e tudo continuaria como está. Porém, como seria para o Jorge o arranjo dele para com ele mesmo? Quais seriam as consequências para o seu diálogo interno? Como ficariam os seus valores? Com que moral poderei falar com a minha filha? Como vou falar com os meus pais? Pensava. Para Jorge a sua obrigação moral seria a de não assinar, uma vez que ele não concordava com os meios ou mesmo com os fins. Para isso, ele teria que abrir mão daquilo que conquistara. Ele sempre quisera oferecer uma boa condição de vida para a sua família, algo que ele podia fazer agora. Vou jogar tudo isso fora? Como vou pagar as minhas contas? Se eu não assinar um outro vai assinar. Então por que não assinar? Pensou.
Até o final de domingo Jorge tomara a decisão.
Sentado em frente a sua casa, Jorge reconhece que a sua qualidade de vida melhorou com a decisão tomada naquele final de semana. Nove anos se passaram desde o dilema que Jorge enfrentara. Ele ainda lembra daquilo que passou detalhe por detalhe. O diálogo do Diretor Geral na presença do Coordenador nunca lhe saiu da cabeça. Jorge não volta sempre para essas lembranças, porque ele prefere deixá-las num canto oculto da memória. Não quer dizer que tenha se esquecido.
Na segunda-feira, quando voltou para a organização, dirigiu-se ao escritório do seu Coordenador. Bateu à porta. Recebeu permissão para entrar. Em seguida, apresentou a sua demissão sem dizer uma palavra. Não se justificou. O Coordenador não lhe pediu explicações. A sua esposa fez o mesmo no seu departamento. O Jorge tomou a sua decisão mantendo o foco na sua integridade e nas suas motivações internas, agindo sob a sua perspectiva daquilo que entendia por ética. Ele abandonou o sonho de ser um contabilista. Iniciou o sonho de ser o dono do seu próprio negócio. Não denunciou. Nunca disse nada para a sua filha. Nunca disse nada para os seus pais. Ninguém nunca soube o porquê de sua saída da organização que ele tanto gostava. Porém, Jorge tinha a sua consciência tranquila, porque se quisesse poderia dizê-lo.
Ao se enfrentar com o dilema o Jorge considerou um lema que aprendera com o seu pai: