Entrando de cabeça!

Entramos na cidade e procuramos o hotel. No momento caía uma tromba d’água típica de verão. O vento forte também se fazia notar. Fomos até a área de desembarque do hotel. Estávamos juntos, meus dois irmão e eu, depois de mais trinta anos sem fazer uma viagem juntos. Meu irmão mais novo em relação a mim, não com relação à idade, era o motorista. Ele deixou o carro de forma que eu pudesse desembarcar com mais espaço em função da cadeira de rodas. Meu irmão mais velho, com relação a mim e também à idade, tirou a cadeira de rodas do porta-malas, deixando para que eu pudesse sair do carro. Enquanto eles pegavam as bagagens, eu desembarquei e pensei em ir até a recepção para fazer o check-in. No caminho havia uma imensa porta de vidro. Fiz um movimento com bastante força para abri-la e ainda assim manter o controle da cadeira de rodas, usuário dela que sou. Logo vejo um homem bem vestido se aproximando rapidamente para tentar me ajudar. Já era tarde. A porta já estava aberta. O homem, que era o gerente do hotel, estendeu-me a mão num cumprimento dando-nos as boas vindas. Tudo certo, mas eu ainda estava no vão da porta que agora era mantida aberta pelo gerente. Para desocupar a passagem dei um forte impulso na minha cadeira de rodas olhando para aquele imenso espaço plano do saguão do hotel na minha frente. É o sonho de um cadeirante. Espaços amplos. Pisos lisos. Nenhum degrau a vista. Pode-se até usar a cadeira de rodas para brincar. A cadeira respondeu ao impulso dado. Começou a mover-se rapidamente. A minha visão mirava lá na frente o balcão da recepção com os mais de dez metros que nos separavam. Cheguei a inclinar o corpo para frente com a empolgação do espaço vazio que tinha a percorrer. Não havia nenhum degrau a vista. Na verdade eu olhei para muito longe. Esqueci-me de olhar no primeiro metro a minha frente. Ampliei a visão, mas não cuidei da minha volta. Na minha frente havia um desnível de dois centímetros que se tornava invisível para mim. O impulso fora dado. A cadeira se moveu com força, mas logo as rodinhas dianteiras travaram naquele pequeno degrau que não estava à vista. A cadeira parou. Eu não. Continuei minha trajetória buscando o balcão da recepção, ainda sem entender o que acontecia ao perceber que eu estava estatelado no chão do saguão do hotel aos pés do seu gerente. 

Esse é um daqueles momentos em que se tem a impressão de que o tempo para. O gerente estava em choque. Os meus irmãos, assim como eu, não entendiam o que eu estava fazendo ali no chão. Os outros hóspedes também estavam perplexos. Depois daquele breve instante em que nada se move entendi o que havia acontecido. O degrau que não estava a vista derrubou-me.

Acontece que alguns minutos antes o hotel teve uma das portas de vidro arrancadas pela força do vento que acompanhou a tromba d’água daquela chuva de verão. A porta se quebrou. O vidro se esparramou pelo chão e também foi parar sobre o tapete que deveria estar no primeiro metro depois do vão da porta. Eles retiraram o tapete para limpá-lo. A pequena saliência apareceu no lugar pensado para o tapete. Como ele não estava ali, quem foi parar no lugar dele foi quem não viu o pequeno degrau.

O gerente, assustado, quis ajudar-me a voltar para a cadeira. Pegou-me por um braço começando a puxar-me. Tive que pedir:
– Só um instante, por favor. Só um instante.

Ele parou, mas logo estava novamente agarrado num dos meus braços puxando-me sem saber para onde, dizendo:
– Eu te ajudo. Deixa que eu te ajudo.

Tive que ser um pouco mais ríspido:
– Não, não. Se você quiser me ajudar vai atrapalhar. Pode deixar que eu volto sozinho para a cadeira.

O gerente ainda manteve as suas mãos em mim por um instante. Acredito que ele não entendia como não podia ou como não deveria me ajudar. A diferença nisso tudo é que na verdade ele não sabia me ajudar ainda que quisesse. Caso eu o deixasse fazer o que ele faria? Puxar-me-ia pelo braço fazendo 80kg voltarem para a cadeira? No máximo ele conseguiria me arrastar pelo chão até o balcão da recepção.

Logo um dos meus irmãos se aproximou e disse:
– Pode deixar, pode deixar. Fica tranquilo. Ele tá meio velhinho, mas ainda consegue subir na cadeira… Dando risada.

Parece que finalmente o gerente se tranquilizou um pouco. Ele deu um passo atrás e eu pude ajeitar-me de modo a permitir que com um movimento usando a força dos braços retornasse a cadeira de rodas. De volta a cadeira, arrumei a roupa, recompus-me e cumprimentei o gerente apropriadamente. Ele não parava de se desculpar pelo ocorrido. 

Meus irmãos não paravam de rir da cena e ainda diziam:
– Isso é que é entrar de cabeça num lugar!


Fica a lição: vai entrar de cabeça numa atividade, profissão ou empreendimento? É necessário ampliar a visão e explorar os horizontes, mas é imprescindível saber onde você está. Quantas vezes nós cuidamos daquilo que é dos outros, mas não nos responsabilizamos por aquilo que deveríamos? É bíblico: primeiro devemos tirar a trave do próprio olho para depois poder tirar o cisco do olho do outro. Por isso, devemos cuidar daquilo que está mais próximo para que possamos chegar mais longe. 
Fone: http://www.planetaeducacao.com.br/portal/impressao.asp?artigo=643

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