Conhecimento e ferramentas: onde está a sabedoria?
“Toda a teoria deve ser feita para poder ser posta em prática, e toda a prática deve obedecer a uma teoria” .
(Fernando Pessoa)
O grupo se encontrava uma vez por semana para debater alguns temas relativos ao conhecimento, como as constatações e as descobertas da neurociência sobre a área comportamental. Igualmente, eram exploradas novas ferramentas de aplicação do conhecimento usadas nos cursos e formações que os integrantes do grupo, como intelectuais e professores, ministravam. Não eram jovens, porque tinham entre cinquenta e oitenta anos. Um dos integrantes trouxe o tema da saúde e bem estar e comentou:
– As atividades físicas são indispensáveis para que possamos ser mais produtivos… (apresentou conceitos e dados científicos para comprovar).
Em seguida, trouxe outras informações apoiadas em diversas pesquisas científicas que apontavam o jejum programado como uma estratégia que produzia benefícios para a saúde cardíaca e que aumentava a longevidade.
Uma conversa interessante, mas do que tratamos nesses parágrafos iniciais? Falamos do conhecimento trazido pela ciência que mostra que podemos ser mais produtivos e longevos com atividades físicas e jejum. Da mesma forma, mostramos duas ferramentas com comprovação científica que podem contribuir na busca por produtividade e longevidade: as atividades físicas e o jejum. Fica a pergunta: onde está sabedoria?
Comecemos respondendo: o que é sabedoria? A palavra tem origem no latim sapere e para o nosso texto será entendida como a capacidade de atuar com retidão, juízo, discernimento e bom senso frente a situações cotidianas ou extraordinárias, levando-nos a ser sábios. Acrescente-se conhecimento, raiz latina de cognescere, a capacidade de apreender as coisas usando o raciocínio ou a experimentação e que por meio de sua aplicabilidade transforma a realidade. Por fim, as ferramentas são “aquelas que servem de meio para determinado fim” (Dicionário Priberam da Língua Portuguesa), contribuindo para ampliar as capacidades das pessoas ao realizar uma atividade pontual ou alterar o entorno. As ferramentas derivam do conhecimento e ambos podem ser ensinados. Porém, podemos conhecer e ter ferramentas e ainda assim não sermos sábios, porque o uso do conhecimento e das ferramentas, seja para o bem ou para o mal, é uma escolha individual. Desse modo, a sabedoria necessita ser aprendida e praticada, uma vez que ela vem de dentro de cada um, exigindo comportamentos baseados no bom senso, no juízo, no discernimento e na retidão.
Por que faço essa digressão? Porque o grupo que comentei no início é formado por intelectuais de diferentes áreas, com muito conhecimento e o domínio de diferentes ferramentas. Entretanto, não são necessariamente sábios, uma vez que a sabedoria exige a prática do conhecimento por meio do uso das ferramentas com a intenção reta, com a capacidade do discernimento entre o bem e o mal a partir do bom senso daqueles que tem juízo. Ao observar o grupo, sabe-se que não é bem assim, porque nem sempre as ferramentas são usadas com sabedoria, quer seja para realizar uma atividade pontual pessoal ou mesmo melhorar o entorno. Ao resgatar a teorização inicial sobre a importância da atividade física e do jejum e observar os integrantes do grupo, pode-se constatar que ele é formado por intelectuais, mas também por sedentários e glutões.
Dessa forma, de que me serve ter o conhecimento sobre a importância das atividades físicas se não pratico?Qual a utilidade de conhecer e discorrer sobre os benefícios do jejum se nunca faço? Portanto, acredito que a sabedoria reside na capacidade de apropriar-se do conhecimento e de usar as ferramentas ao colocá-las em prática para benefício próprio e do entorno. Caso contrário, para que conhecer? Senão ficamos com intelectuais que não dominam a prática, comparados a corredores que não correm, a remadores que não remam, a jogadores que não jogam, a engenheiros que não engenham ou a religiosos que não rezam.
Enfim, a sabedoria pode ser encontrada com quem tem muito conhecimento, assim como no bom senso e no senso comum, porque o conhecimento e o domínio de suas ferramentas não garantem o surgimento de um sábio.
Outro dia, escutei um voluntário que participa da “pastoral social” de uma comunidade em que ajudam pessoas e famílias em estado de vulnerabilidade social. O trabalho consiste em cadastrar, acompanhar e orientar as pessoas para sair do estado de dependência para a independência por meio da qualificação e da recolocação profissional daqueles que podem. Porém, também é feito um trabalho assistencial com a doação mensal de cestas básicas considerando as necessidades de cada família ou grupo de pessoas atendidas. Desse modo, no primeiro final de semana de cada mês as pessoas são acolhidas e recebem os alimentos. O voluntário contou que, numa das vezes, o pai que buscaria a cesta básica não pode ir. O pai, além de desempregado, estava doente e mandou o seu filho de dez anos. O menino, ao receber a cesta básica foi ajudado pelo voluntário que perguntou:
– Tá pesado? Com ar de tristeza.
O menino voltou o seu rosto para ele e respondeu:
– Ainda bem que tá pesado. Quer dizer que tem muita comida!!! Com um sorriso de alegria.
Fiquei impressionado com a resposta e a analogia possível a partir dela. Por isso, pergunto: a sua jornada parece pesada? Os desafios são assustadores? Acredito que a alegria ou a tristeza pelo peso que cada um carrega depende daquilo que se escolhe carregar. Portanto, faça uma pausa e se pergunte: o que escolho carregar?
Ao escolher uma carga podemos agir frente a ela com alegria ou com tristeza, isso depende de cada um.
Entenda-se alegria como um sentimento de satisfação e de contentamento, comumente expressa por meio de sorrisos. Por outro lado, a tristeza pode ser entendida como um sentimento típico de quem não tem alegria ou ânimo, revelando-se na insatisfação. Ambos os sentimentos são essenciais ao ser humano, entretanto cada um pode escolher com qual deles mais tempo vai viver.
Entendo que a alegria pelo peso que se carrega está relacionada com a coragem de que se pode desenvolver as capacidades necessárias para os desafios que nos são propostos, enquanto a tristeza surge do medo de não ter forças para superá-los. A alegria frente a jornada surge pela disposição de poder fazer algo que está ao meu alcance, enquanto a tristeza tem sua fonte na preguiça em realizar o esforço exigido. A alegria diante de situações injustas me leva à ação, enquanto a indignação traz a tristeza que paralisa. A alegria perante atitudes das quais divirjo se fundamenta na confiança no outro como um verdadeiro outro que me conecta, enquanto a tristeza fomenta o ciúme e a desconfiança que desconectam. A alegria ante a realização e as conquistas de amigos e colegas se traduz em vínculos verdadeiros, enquanto a tristeza revela a inveja. Por fim, a alegria, ainda que se esteja enfrentando situações difíceis, brinda-me com a paciência, enquanto a tristeza ao não ter tudo sob o meu controle produz a impaciência.
Não se trata de não reconhecer a tristeza como um sentimento verdadeiro e necessário, mas de saber a sua origem para escolher enfrentar a realidade com a consciência das escolhas que posso fazer. Nenhuma tristeza é permanente, a menos que eu escolha que seja. Toda alegria é uma escolha, ainda que pareça que não tenha motivos.
Por fim, o menino de dez anos teria razões para estar triste com a condição de vulnerabilidade social vivida pela família e a doença do pai. Assim, muitos de nós escolhemos estar tristes pelo peso da jornada e alimentamos o medo; deixamo-nos levar pela preguiça; nutrimos a indignação; promovemos o ciúme; estimulamos a inveja; e exibimos a impaciência com aquilo que não temos. Com isso, esquecemos de desfrutar a jornada de escolher aquilo que vamos carregar. Voltando ao menino de dez anos, ele escolheu o sorriso da alegria que expressa a gratidão pelo que se tem, caminho para uma vida plena.
Escolha a sua carga e o sentimento será o indicativo de que a jornada está valendo a pena.
Na última semana escutei uma entrevista em que o entrevistado defendia a prática diária da oração como uma maneira inteligente e intimista de orientar os passos facilitando as escolhas na vida. O entrevistador perguntou:
– Se a oração é tão importante, por que tem tanta gente que não acredita?
O entrevistado respondeu:
– Somente não acredita na oração quem não pratica.
A resposta fez todo o sentido para mim. Passei a pensar em outras situações, como o trabalho, o estudo, a honestidade, a bondade ou a confiança em que não acredita aquele que não pratica.
Antes de fazer outros paralelos, creio ser importante entender o que significa “oração”, vocábulo de origem latina “orare” e “oratio” derivadas de “os”, “oris”, sendo entendida como as palavras que endereçamos a Deus. Muitos podem não acreditar em Deus, dando-Lhe nomes como energia cósmica ou outra denominação qualquer, porém vale dizer que ninguém, até hoje, sabe explicar a nossa existência. Enfim, para fazer uma oração é preciso acreditar em Deus, ou pelo menos ter a humildade de se ajoelhar frente ao Desconhecido, sendo a oração uma estratégia para criar e estabelecer uma relação direta e pessoal com o mistério da vida.
Existem diferentes tipos de oração, podendo ser ela vocal, meditativa e mental. A (1) oração vocal pode ser praticada pela repetição de orações estruturadas ou pela invocação de orações espontâneas, muito presentes em eventos públicos e reuniões de pessoas. A (2) oração meditativa é uma procura íntima pelo entendimento dos mistérios e desígnios da existência a partir de leituras e reflexões, confrontando-as com a própria vida. E, finalmente, temos a (3) oração mental que se trata de uma conversa amistosa com esse Deus por quem nos reconhecemos amados pelo privilégio da vida que temos (Santa Teresa de Avila). Desse modo, pode-se depreender que ao acreditar em Deus me habilito a orar e ao desenvolver a habilidade de orar a oração passa a funcionar para aquele que a pratica.
Um raciocínio semelhante podemos levar a outras áreas: ao trabalho, porque somente acredita no trabalho quem trabalha; aos estudos, porque unicamente reconhece a importância do estudo aquele que estuda; à honestidade, porque valoriza a honestidade aquele que é honesto; à bondade, porque ela é uma prática; e à confiança, porque quem confia, provavelmente, é de confiança. Do outro lado, aquele que não trabalha, não estuda, não é honesto, não é bondoso e não confia desenvolve comportamentos de inveja, avareza e maldade, não entendendo outros comportamentos. A passagem bíblica “…pois a boca fala do que está cheio o coração” (Mateus 12:34) traz uma verdade que se aplica aquilo que falamos, refletindo-se naquilo que fazemos.
Qual a importância da oração? Acredito que a oração é a porta de entrada das boas intenções que se refletem naquilo que se fala e naquilo que se faz. Por isso, aquele que ora, acredita no trabalho e trabalha; dedica-se aos estudos e estuda; valoriza a honestidade e é honesto; pratica a bondade e é bondoso; e desenvolve a confiança e confia em si mesmo e nos outros. Por fim, a oração como pratica diária, rotineira e constante nos leva à riqueza. Como assim? Sim, ressalte-se a riqueza de se reconhecer um privilegiado pela vida recebida que nos permite desfrutar dos pequenos grandes milagres de todos os dias. Num só dia podemos presenciar o nascer e o pôr do sol, o fenômeno da chuva, as carícias do vento e as belezas dos campos e das florestas. Podemos apreciar os cheiros das flores, os gostos das frutas e escutar belas canções. A riqueza se reflete no aconchego do abraço de um pai e de uma mãe; de um irmão e de um filho; de um sobrinho ou de um neto; de um amigo ou de um desconhecido.
Finalmente, a riqueza se espelha na esposa ou no esposo que escolhemos para cumprir com a nossa jornada pela vida, com a Benção de Deus. Para isso, é essencial acreditar no compromisso que se revela no amor construído no dia a dia, com trabalho, aprendizado, honestidade, bondade, confiança e muita oração.
Enfim, como disse o Pe. Patrick Peyton: “família que reza unida permanece unida” e essa riqueza é resultado da oração.
Ao atingir a meta estabelecida para o ano de trabalho remunerado, busco oferecer uma ou duas oficinas gratuitas. Para manter a qualidade, as vagas são limitadas e respeitam a ordem de inscrição. Assim fiz no último mês. As vagas foram abertas e em pouco tempo foram preenchidas. Recebi pedidos de informações sobre novas oportunidades, respondendo que somente seriam ofertadas no próximo ano. Frustração para aqueles que não conseguiram mais vaga. Para mim, a alegria de poder compartilhar conteúdos e experiências para transformar e ser transformado pelo mundo ao qual pertencemos. Comecei a preparação do conteúdo dedicando horas de pesquisa e elaboração de novas atividades com uma sequência de reuniões de trabalho com a minha colega facilitadora da oficina. Duas pessoas comprometidas em entregar o melhor. A minha expectativa aumentava com a proximidade da data de início da oficina. Enviamos mensagens com material preparatório. Finalmente chegou o dia e abrimos a sala virtual trinta minutos antes do horário marcado para receber os participantes. A expectativa nos gerava a alegria. O horário de início chegou e nenhuma das pessoas que se haviam inscrito compareu. Em mim, sentimento de frustração. Cinco minutos depois do horário marcado entrou a primeira pessoa e começamos a oficina com trinta minutos de atraso contando com a presença de apenas vinte por cento dos inscritos. Pergunto: quanto vale um evento gratuito? Qual é a responsabilidade daquele que se dispõe a receber?
Para a pergunta “quanto vale um evento gratuito?” se deve considerar que não há nada que seja gratuito. Ainda que não se pague por algo que se está usufruindo, alguém está pagando. Esse pagar pode ser em dinheiro, recursos, tempo ou outra forma de comprometimento com aquilo que é oferecido de graça. A oficina não teria cobrança financeira aos participantes, contudo, houve o custo de tempo para a preparação e os recursos tecnológicos usados pelos facilitadores. Além disso, ao oferecer a oficina quem a ministra deixa de usufruir de outras possibilidades para estar onde se comprometeu estar. Portanto, posso não pagar pelo almoço, porém alguém o paga.
Não havendo nada que seja gratuito, isso nos leva para a questão da responsabilidade de quem se dispõe a receber. Aqueles que se inscreveram ocuparam as vagas e impediram que outros se inscrevessem. Ao não participarem efetivamente da oficina, privaram a outras pessoas de receber gratuitamente algo a que eles se candidataram. Eis a responsabilidade com aquilo que é “gratuito”. Escolher não receber o que é disponibilizado gratuitamente não é problema, entretanto, quando a minha escolha priva o outro temos um problema.
Tomemos como exemplo o sistema de saúde brasileiro, gratuito. Muitas pessoas tem seus horários agendados com médicos ou laboratórios e não comparecem. Deixaram de receber um benefício por sua escolha, porém roubaram de outra pessoa a possibilidade de fazer uma consulta ou os exames que seriam importantes. Qual é a tua responsabilidade sobre aquilo que você não paga? Quem está pagando? Creio ser importante responder.
Voltando à oficina, confesso que a minha frustração inicial se havia alimentado da expectativa pela presença das pessoas que se inscreveram que não se concretizou. Em seguida, ao me desvincular da expectativa a frustração se transformou em entrega, porque o meu compromisso era com a minha presença e com a presença daqueles que escolheram estar. A ausência dos inscritos era de sua responsabilidade.
Enfim, naquele dia começamos a oficina na qual, inicialmente, sentia o gosto amargo da frustração pela não presença de muitos que não compareceram, porém terminamos a noite com o sabor da satisfação presente no sorriso e no reconhecimento daqueles que estavam presentes. Por isso, o exercício de resgatar a frustração pela expectativa não cumprida com o foco na responsabilidade do compromisso nos traz satisfação. O compromisso está no nosso controle e ele sempre é remunerado.
Na manhã seguinte a mensagem de uma das presentes: “Bom dia a todos! Ontem foi maravilhoso!!!”. O compromisso está pago!
Ela é uma profissional da área de Recursos Humanos que dedicou os últimos catorze anos de sua vida a uma empresa que fecha as portas em seu país. Para continuar na organização teria que mudar para o país sede da empresa, sendo esse preço muito alto. Assim, ela se demitiu. Começou uma nova jornada e numa das atividades ela teve que entrevistar uma pessoa idosa. Dirigiu-se a uma casa de anciãos onde encontrou uma senhora de 86 anos com uma vitalidade impressionante, uma lucidez admirável e uma alegria maravilhosa. Ao comentar a entrevista, ela disse:
– Eu quero envelhecer assim! Não sei de onde vem tanta força?
Não há uma só resposta para a pergunta de onde vem tanta força, porém uma história contada pelo Pe. Nardi traz várias reflexões.
Ele contou que havia um homem que vivia numa região em que o calor era predominante. Um dia recebeu de presente um par de luvas de couro forradas, apropriada para regiões frias. O homem agradeceu e como não viu serventia guardou as luvas numa caixa de bugigangas. Tempos depois, ele foi transferido para uma região fria. Ao organizar a mudança encontrou as luvas esquecidas e fez o movimento de calçá-las, mas os dedos não chegavam ao final de seus espaços. Pressionou um pouco mais e doeu. Ele não desistiu e descobriu uma pedra na ponta de cada um dos dedos das luvas. Para tirá-las dali teve que fazer esforço e ter cuidado. No final valeu a pena, porque as pedras eram diamantes.
A fábula nos leva a perguntar: quais são os teus recursos internos?Qual o esforço que você faz para alcançá-los? Onde estão os teus diamantes?
No momento vivido, muito tem-se falado, divulgado e vendido cursos de autoconhecimento. É importante no caminho para a redescoberta de nossos recursos internos presentes nas forças e virtudes individuais. Contudo, exige esforço.
Da perspectiva científica, a psicologia positiva tem ajudado ao mapear as virtudes humanas compartilhadas ao longo do tempo em toda a humanidade, sendo elas: sabedoria, coragem, humanidade, justiça, temperança e transcendência. Cada virtude traz um grupo de forças, igualmente transversais aos seres humanos de diferentes culturas, etnias e regiões. Porém, cabe a cada um de nós descobrir as suas virtudes e forças para trazê-las a luz do dia. Tirá-las da ponta das luvas requer esforço.
Destaco, porém, que a perspectiva da psicologia positiva não é nova. Ao voltarmos no tempo, encontramos na filosofia e na espiritualidade conhecimento semelhante ao propagado pela psicologia. Na esfera religiosa há uma descrição semelhante aquilo que hoje é tratado como científico: as virtudes morais, as virtudes teologais e os dons do Espírito Santo. As virtudes morais ou humanas são muitas que podem ser agrupadas em torno da prudência, da justiça, da temperança e da fortaleza, trazendo em si os indicadores que regulam nossa conduta segundo a razão. As virtudes teologais são três, sendo elas a fé, a esperança e a caridade, levando-nos a respeitar o mistério da vida tratando o próximo como irmão, filhos de um mesmo Deus. Por fim, existem os dons do Espírito Santo: a sabedoria, a inteligência, o conselho, a fortaleza, a ciência, a piedade e o temor de Deus. Dessa perspectiva, entende-se que ao exibir as virtudes presentes nos dons do Espírito Santo, mais facilmente se desenvolvem as demais forças e virtudes humanas anteriores. Destaque-se que temor a Deus não se refere a medo, mas sim a respeito ao desconhecido. De todas as formas, para acessar os recursos internos há que se propor a tirá-los das pontas das luvas.
Voltando a vitalidade, lucidez e alegria da senhora de 86, certamente elas vêm da força de alguém que conseguiu acessar os seus recursos internos ao descobrir os diamantes nas pontas dos dedos das suas luvas recebidas como presente. Ela não deixou o presente recebido abandonado no fundo de uma gaveta. A entrevistadora citada está buscando o caminho para encontrar o presente em suas luvas, sendo a psicologia, a filosofia e a espiritualidade possibilidades de caminhos.
Da esquerda para a direita: Antônio Schuster, Wagner Rauber, Oguener Tissot (In memorian) e Moacir Rauber
Remando em outras águas…
A equipe estava composta por quatro pessoas e a proposta era remar 220km em seis dias na Lagoa dos Patos-RS. Tudo estava meticulosamente planejado, como o percurso, o tempo, a alimentação, as paradas e os recursos necessários. Somente faltou combinar com o “imponderável” (Seu Antônio). Ao final do primeiro dia, todo o planejado havia ido por água abaixo. O horário para finalizar a jornada deveria ser às 18h e já passavam das 22h sem concluir. A remada deveria ser desafiante sem ser dolorosa, porém agora estavam todos próximos da exaustão. Na escuridão da noite na lagoa o cansaço pedia passagem, levando-nos quase ao desespero. As águas internas se agitavam na ansiedade, no medo e no desassossego de cada um. Entretanto, um entre nós, que era técnico de remo olímpico, manteve o espírito elevado com a sua capacidade de extrair o melhor de cada atleta. As águas internas dos companheiros podiam estar agitadas, mas ele refletia a calma, o equilíbrio e a serenidade. Quando ele sentia que o clima ficava pesado com o silêncio reinando entre os integrantes da equipe, falava algo que nos animava. Num momento, ele disse:
– Falta menos!!!
Com isso, voltávamos a remar com a confiança de cumprir com a meta do dia.
Quem era o técnico de remo olímpico de que falo? Meu amigo Oguener Tissot que, lamentavelmente, foi remar em outras águas no acidente ocorrido no dia 20-10-24 na serra do Paraná. O que é o remo olímpico? É uma modalidade de velocidade que usa embarcações estreitas e leves em que cada atleta rema de costas. O atleta vê de onde veio, porém não sabe para onde está indo, analogamente à vida. No remo, realiza-se um movimento perfeito em que se trabalham todos os grupamentos musculares do corpo simetricamente, sendo mais efetivo em águas calmas.
O meu amigo técnico havia desenvolvido a capacidade de ensinar os seus alunos e atletas praticantes de remo, aclarando-os sobre as regras, os princípios e os valores da modalidade. Assim, ele sabia conduzir e preparar fisicamente cada um dos integrantes de sua escola, entre jovens, adultos e pessoas da terceira idade. Ele organizava, acompanhava e supervisionava todas as atividades propostas para os treinamentos, independentemente do objetivo. Para alguns o objetivo eram as competições, para outros o lazer e para outros mais podia ser o condicionamento físico. Sobretudo, o meu amigo ensinava os valores da lealdade e da amizade, muito mais do que a busca por resultados num campeonato local, estadual, nacional ou internacional de remo. E considere-se que ele foi a pessoa que mais atletas competitivos promoveu na história recente do esporte no Brasil. Porém, o mais importante que ele fazia era resgatar o melhor de cada um a partir de dentro de si mesmo. As águas do rio, da lagoa ou do mar podiam estar agitadas, mas ele conseguia transmitir a calma, a serenidade e o equilíbrio a partir de sua força emocional. Ele havia se especializado em acalmar as águas emocionais de seus atletas e comandados.
Voltando ao nosso desafio de remar os 220km na Lagoa dos Patos, nós o cumprimos mudando o planejado em conformidade com a realidade. Ressalte-se que naquele momento de exaustão, cansaço e quase desespero relatado no início, o meu amigo era um atleta como todos nós. Por isso, certamente ele também estava cansado. Entretanto, ele conseguia encontrar forças para se manter calmo, sereno e equilibrado para incentivar aos demais como o técnico que foi. Porém, muito mais do que isso, ele era um amigo especializado na lealdade, na confiança, na paz e na serenidade com que viveu a sua vida. Sim, ele foi chamado para remar em outras águas onde vai seguir sua jornada de levar a calma, o equilíbrio e a serenidade que sempre promoveu na sua curta jornada aqui na terra.
Ir ao supermercado é uma experiência que se repete pela necessidade de comprar os produtos de subsistência inerentes ao ser humano. Vou com minha esposa, às vezes a contragosto, outras vezes porque gosto de observar e, muitas vezes, fazer meus juízos de valor. Somos humanos, somos estranhos. Observo um casal em que o homem abre uma das geladeiras para escolher um pedaço de carne congelada. Ele revira todos os pedaços e segue em frente sem levar nada deixando o freezer aberto. Mais adiante vejo uma mulher idosa que se aproxima da pilha de papel higiênico, apalpa um pacote e com o dedo perfura o plástico para sentir a textura. Aproximo-me da mulher e pergunto:
– Perdão, senhora, não se pode fazer isso. Imagina se todos fizessem o que você fez, como seria?
Ela me olha entre desafiada e ofendida. Logo responde com raiva:
– Você não tem nada a ver com isso! E eu não sou como todos! Que se danem todos!
Foi uma senhora, mas poderia ter sido qualquer um.
Discordo dela quando me diz que não tenho nada a ver com isso, porque tenho a ver com a sua atitude, assim como todos os clientes. Ela furou e tocou um produto que posteriormente poderia ter sido comprado por mim ou por qualquer outra pessoa. Assim, aqui quero ressaltar a dificuldade que temos de viver em sociedade exercendo a nossa liberdade, respeitando o espaço e o direito à liberdade do outro. As situações relatadas são exemplos extraídos da realidade ordinária que podem pouco importantes por serem de baixo impacto, porém creio que elas se repetem em situações de maior impacto em que pessoas com o mesmo entendimento da realidade como as acima citadas estejam presentes.
A questão proposta “se todos vivessem como eu…” leva o indivíduo a resgatar os seus valores e princípios éticos refletidos em seu comportamento. Entenda-se ética como o campo do comportamento humano que estuda os princípios que motivam, distorcem, disciplinam ou orientam as ações individuais que se refletem em normas e valores presentes na vida e no dia a dia das pessoas. Com isso, constituem-se um conjunto de regras que carregam em si determinados valores morais das pessoas que terminam por ser representativos da sociedade. A partir desse conceito pergunto: o que se pode esperar de uma sociedade composta por indivíduos que não conseguem entender que o seu comportamento impacta a vida de outras pessoas? Acredito que ainda temos um longo caminho de retorno evolutivo para resgatar determinados comportamentos que eram valorizados em tempos passados para que possamos construir uma melhor sociedade no presente e no futuro. Trata-se de voltar a incorporar valores de colaboração, cooperação e consciência ética de saber que aquilo que faço, ainda que ninguém veja, deveria poder ser feito por qualquer um sem que isso represente um dano ou produza um impacto negativo na vida das demais pessoas. O que você faz poderia ser feito por qualquer pessoa?
Enfim, aquela senhora me respondeu com agressividade ao ser interpelada por mim frente ao seu comportamento. Furar um pacote de papel higiênico é grave? Pode parecer que não, entretanto reflete a nossa falta de pensamento coletivo em que as minhas ações impactam a vida das outras pessoas. Como ela acertadamente disse “eu não sou como todos”, ainda bem, porque ninguém é como ninguém. Porém, o exemplo dado por um deveria poder ser seguido por todos. Da mesma forma, eu não quero viver como todos e provavelmente todos não querem viver como você ou como eu, contudo, há a possibilidade de que outros copiem aquilo que você faz. Desse modo, cada um de nós deveria ter isso em mente. Por isso a importância da pergunta: e se todos vivessem como eu?
Na sequência vi uma menininha que tinha sete ou oito anos colocar novamente em seu lugar um pacote de bolachas que alguém havia derrubado por distração. Ainda há esperança!