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JÁ QUE INSISTE…

Fonte: IA DALL-E

Já que insiste…

Minha família vivia no campo. Pela manhã o trabalho começava cedo com a ordenha das vacas, a recolha dos ovos das galinhas e o alimento dos porcos. Todos participavam. A vida no campo tem seu lado idílico, porém o cotidiano exige disciplina e dedicação em que feriados ou férias praticamente inexistem. Não se pode deixar de alimentar ou de cuidar dos animais de um sítio somente porque estamos no Natal ou é dia de Ano Novo. Depois era a hora do café da manhã. Em seguida a rotina da roça para nós, os filhos com o pai, que podia ser capinar, preparar a terra, plantar ou colher. Para a mãe vinha o trabalho doméstico de cuidar das roupas, da horta e da comida. Próximo ao horário do meio dia voltávamos para casa. Tomávamos algumas cuias de chimarrão e às 12h nossa mãe servia o almoço. Para nós que tínhamos entre 9 e 10 anos a fome era gigante. Muitas vezes, porém, aparecia um dos vizinhos justamente nesse horário. Sentava-se na roda do chimarrão. A hora do almoço chegava e ele não fazia menção de ir para a sua casa. Minha mãe com o almoço na mesa. Nós, os filhos, com as barrigas roncando. O pai, num gesto de educação, fazia um convite:

– Almoça conosco?

O vizinho prontamente respondia:

– Já que insiste… e se dirigia à mesa.

A cena se repetia a cada duas ou três semanas a ponto de gerar um desconforto para a nossa família. O que revelam o convite e a resposta?

Por um lado, a resposta do vizinho inconveniente revela a falta de capacidade de interpretação do ambiente relacional em que a oferta não era exatamente um convite. É essencial desenvolver a habilidade social para entender cada contexto. Como no caso da nossa família, o convite feito pelo meu pai para o vizinho se tratava de uma estratégia para que ele desse o espaço que necessitávamos para cumprir com a rotina do almoço. Isso porque, após o almoço viria o trabalho da tarde. Por outro lado, o convite não tão autêntico feito pelo meu pai revelava a escolha de uma estratégia comunicacional que não surtia o efeito desejado. Desse modo, após os constantes reveses, qual a estratégia que poderia meu pai ter adotado?

A Inteligência Positiva mostra os sabotadores que cada um de nós carrega dentro de si, entre eles o Crítico como sabotador principal. Porém, existem outros sabotadores que aliados a ele estimulam a que se adote uma estratégia que não produz o resultado esperado. Creio que o meu pai exibia o sabotador denominado de prestativo, que busca agradar e não melindrar o sentimento dos outros, perdendo de vista as próprias necessidades. Desse modo, a partir do momento em que os resultados começaram a gerar um desconforto, seria natural que meu pai mudasse de estratégia. Nesse ponto, a Comunicação Não-Violenta oferece um passo a passo que permite mudar a estratégia a partir dos fatos. Primeiro, o fato observável é que convite era único, não havia insistência. Segundo, o sentimento gerado pela presença repetitiva do vizinho no almoço familiar era de incômodo. Terceiro, a necessidade de ordem, ao almoçar no horário pretendido, e a necessidade de intimidade familiar não estavam sendo satisfeitas. Quarto, como poderia meu pai fazer um pedido claro sem ser agressivo com o vizinho? O que você faria? Não tenho uma resposta certa, mas mudar de estratégia era importante. Há que se lembrar que um “não” para o outro, sem deixar a gentileza de lado, representa um “sim” para as minhas necessidades.

Enfim, a cena se repetiu ao longo do ano até que o vizinho foi viver na cidade. Entre nós o fato virou piada. Até hoje, mais de quarenta anos depois, quando um dos irmãos oferece algo ao outro que aceita, termina-se com a frase, “Já que insiste…”, ainda que tenha sido oferecido uma só vez.

Aproximamo-nos das festas de Natal e final de ano: você tem recebido convites?

Moacir Rauber

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