
Há muitos anos eu era administrador de uma escola de espanhol e estudava nela. A nossa aula havia começado às 8h e, apesar de ser segunda-feira, estava animada. Ríamos das diferentes expressões encontradas na língua de Cervantes. De repente ouço uma confusão na recepção. Saí da sala rumo a secretaria e no caminho encontrei a secretária chorando. Ela me disse que uma senhora entrara na escola e ameaçou chamar a polícia caso a tradução não estivesse ali em quinze minutos. Nesse momento eu já sabia de quem se tratava…
Na sexta-feira anterior eu atendera uma professora da universidade, que recém havia chegado na cidade vinda da capital. Ela havia nos procurado para fazer uma tradução de um artigo que seria enviado para um congresso no exterior. Eu lhe havia dito que era tarde e teríamos pouco tempo para fazer o trabalho. Ela, gentilmente, insistiu, dizendo-me que era importante, caso contrário ela perderia o congresso. Dispus-me a procurar por um professor que aceitasse o trabalho. Por fim, um dos professores aceitou fazer a tradução, que deveria ser entregue até às 11h da segunda-feira. Estranhei, porque no momento da confusão eram 9h. Ela estava irritadíssima. Cumprimentei-a e fomos até a minha sala. Ela me olhou com raiva e começou a gritar:
– Não pense que só porque você me convidou para a sua sala isso vai ficar assim… Eu sou uma Professora Doutora… e continuou descrevendo toda a sua formação, além de insultar a secretária e a mim.
Eu a escutava sem nenhuma reação. Deixei-a continuar esbravejando. Finalmente, ela não encontrando mais impropérios, calou-se. Eu aproveitei para perguntar:
– Posso falar?
Abri a minha gaveta, retirei um bloco de orçamentos, mostrei-lhe o documento que ela havia assinado e perguntei-lhe num tom de voz calmo, porém sarcástico:
– A senhora saber ler? Veja o que a senhora assinou na sexta-feira. E por favor, leia o horário que foi combinado para a entrega do serviço…
Sem alterar a voz, continuei:
– Digo-lhe mais. Se a tradução não estiver aqui até às 11h eu lhe pago uma viagem para onde a senhora quiser ir… Agora a senhora pode se retirar e voltar no horário combinado.
Ela empertigou-se toda e saiu. No horário combinado ela estava de volta. Mostrei-lhe o documento e disse:
– Antes exijo que a senhora peça desculpas para a secretária.
Na saída da professora doutora agradeci:
– É muito bom que a nossa cidade receba pessoas com tamanha qualificação e educação vindas de centros maiores. Nós realmente temos muito que aprender com pessoas como a senhora…
Esse episódio demonstra claramente que se o conhecimento não servir para melhorar as pessoas como seres humanos ele perde a sua função. Ser doutor ou doutora em qualquer área não deveria dar prerrogativas, mas sim o compromisso de melhorar o ambiente em que se atua. Isso porque os doutores do saber representam a elite em seu sentido mais amplo. Não tem falta de recursos econômicos para levar uma vida digna e ainda desfrutam do prestígio de um título conseguido. O título é resultado dos seus esforços, sim, entretanto somente é possível pelo acúmulo de conhecimento de toda a humanidade. E na grande maioria das vezes, o título de doutor é resultado da contribuição compulsória da comunidade que mantém os centros que produzem doutores.
Por fim, acredito que o conhecimento faz toda a diferença para melhorar a qualidade de vida das pessoas, desde que acompanhado da humildade e do respeito. “Sou professor doutor”. E daí? Se não for para ser melhor como pessoa, para que serve ser doutor? Para que serve o conhecimento?
Moacir Rauber
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