Moacir Rauber
Hoje foi um daqueles dias estranhos. Saí pela manhã para deixar o carro para lavar e aproveitei para ir ao correio. Na saída encontrei um amigo que logo me cumprimentou. Ele estava acompanhado de um homem da mesma faixa etária, aproximadamente 40 anos. Rapidamente fui a este outro apresentado com as seguintes palavras:
– Olha, este é o …, somos amigos desde a infância. Fizemos muitas festas juntos! Bailões, cervejadas e muito churrasco…
O homem, vestindo um terno preto e uma pasta executiva nas mãos, estendeu-me a mão e disse:
– É, mas é passado… Hoje não faço mais isso. Arrependo-me todos os dias, mas pelo menos foi parte do caminho para chegar até o Senhor e…
O meu amigo o interrompeu dizendo:
– Sim, hoje ele faz parte da igreja XPTO (citou o nome de uma igreja nova que eu nunca ouvira falar).
Após ouvir a citação do nome da sua nova igreja o homem de terno se sentiu permitido a pregar a palavra, a fazer o trabalho de evangelização. Embora a questão de permissão não seja nenhum empecilho, porque a grande maioria desse novos convertidos não está nenhum um pouco preocupada com licença ou anuência para falar. Eles querem salvar o mundo obrigando os outros a mudarem. Normalmente eles são os possuidores da verdade absoluta. No mundo ideal desses pobres coitados não haveria espaço nenhum para diferenças.
A situação ficou um pouco embaraçosa. O meu amigo puxou outro assunto… Falamos do remo e fiz um comentário usando uma palavra chula. Demos risada, embora o engravatado tenha mantido a cara sisuda. Senti que ele me observava com uma viva curiosidade. Julgava até ter visto reprovação… Em seguida ele interrompeu a conversa:
– Você usa cadeira… Qual é o teu problema?
O sangue me subiu imediatamente. A forma como fez a pergunta, carregando-a como uma acusação, irritou-me profundamente. Pareceu dizer-me que se eu estava na cadeira era por merecimento. Consegui me controlar. Olhei-o nos olhos para dizer com voz calma e pausada:
– Bom, na verdade eu não tenho nenhum problema. Eu estou muito bem! Uso a cadeira porque sofri um acidente ainda jovem…
O sujeito me interrompeu para dizer:
– É, Deus não mata mas castiga!
Fiquei paralisado… Não me refiro a paralisia dos membros inferiores, mas sim ao que se passou na minha mente. Ou melhor, a princípio, ao que não se passou. Fiquei de boca aberta. Acho que pensei algo como, “Não, eu não estou ouvindo isso…”. Muitas vezes já havia passado por situações em que as pessoas sugeriam, sutilmente, que pudesse ser um castigo divino o fato de eu estar numa cadeira de rodas. Porém, nunca, mas nunca mesmo alguém o havia dito assim, de forma tão direta e estúpida.
Quando retomei a consciência apenas disse:
– Estou indo. Até mais!
Fiquei confuso e completamente atordoado por horas. Como havia deixado o carro para lavar fui rodando com minha cadeira pelas calçadas mal conservadas da cidade. Desviava de um buraco e de outro num zigue zague maluco a que os cadeirantes estão obrigados quando querem circular pela maioria das cidades brasileiras. Cadeirantes não, segundo aquele sujeito, os amaldiçoados!
Nada, absolutamente nada contra as pessoas terem a sua religião. Antigas ou novas não faz a mínima diferença. Nem sempre o fato de algo ser antigo nos garante ser verdadeiro, assim como não é o fato de ser novo que nos assegura ser uma evolução. Cada um com a liberdade para acreditar nas suas verdades. Apesar de toda a sua fé essas pessoas não conseguem entender um milagre. Pergunto-me, “Por que haveria de ser um milagre caminhar se todos caminham? Acredito muito mais que seja um milagre viver bem e caminhar sem ter as pernas…
Também fico assustado como o totalitarismo pode se expressar por meio de pensamentos tão tacanhos revestidos de mensagens divinas. Pensamentos em que não se reconhece a liberdade de que outros pensem e ajam de forma diferente. No mundo ideal do sujeito engravatado todos deveriam seguir a sua lei. Somente no dia em que todos pensassem de forma exatamente igual e seguissem os mesmos preceitos o mundo estaria a salvo. Pergunto-me, A salvo de quem? Da diversidade? Das diferenças?
Assusta-me o fato de ainda não entender como se pode respeitar o que é diferente se aquele que é diferente não o respeita?
Se o objetivo daquele que é diferente simplesmente é torná-lo um igual ou senão o castigo divino o eliminará?
É possível?
Aceito respostas…