A chamada para o embarque começa e as prioridades se posicionam, entre eles os usuários de cadeiras de rodas. Naquele voo estávamos em três, eu com cadeira própria e os outros com cadeiras da companhia aérea. Somos os primeiros a embarcar e temos a consciência de que seremos os últimos a desembarcar. Tem a lógica do bom senso. Precisamos de auxílio no momento do embarque, assim como no desembarque e quase sempre ocupamos as primeiras fileiras de assentos. Depois que as prioridades estão acomodadas, começa o embarque dos demais passageiros. O voo parte e chegamos ao destino. É nessa hora que os milagres na aviação, normalmente, acontecem. As pessoas começam a desembarcar e eu fico esperando para ser um dos últimos, assim como deveria acontecer com os outros dois cadeirantes. A comissária avisa que a minha cadeira está à espera. O movimento vai finalizando e nos damos conta que resta somente estou eu de passageiro na aeronave. Olho para a comissária e indago:
– Embarcamos em três cadeirantes, não foi? Cadê os outros dois?
Ela dá um sorriso irônico e responde:
– São os milagres da aviação. Parece que Jesus passou por aqui e disse: “Levanta-te e anda!”. Eles entram em cadeira de rodas e saem caminhando.
Fiquei boquiaberto. A comissária comentou que isso é diário. Disse ela que praticamente em todos os voos eles recebem passageiros em cadeira de rodas que embarcam como prioridade, porém se esquecem da cadeira para poderem desembarcar rapidamente, aproveitando-se que estão nas primeiras fileiras de assentos da aeronave. Eles não são usuários permanentes de cadeira de rodas. Muitos deles têm uma dificuldade temporária causada por um acidente ou pela idade e pedem uma cadeira para a companhia para o embarque. Entretanto, a realidade da limitação se revela no desembarque. A indignação da comissária era sincera, assim como a minha. Logicamente que muitas pessoas usam uma cadeira de rodas como apoio para se deslocar em distâncias maiores, entretanto, percebe-se que outras tantas pessoas apenas se aproveitam de uma condição pensada para resolver o problema daqueles que realmente necessitam.
O que isso nos mostra? Um pouco daquilo que permeia a mentalidade de muitas pessoas: ser esperto e tirar vantagem. Qual é o custo da esperteza? Todos pagam. A comissária me dizia que a empresa é obrigada a disponibilizar uma pessoa para cada passageiro que solicita o acesso ao atendimento prioritário, gerando um custo adicional que é rateado entre todos os passageiros. O passageiro prioritário paga a sua passagem normalmente, porém ele gera um custo maior para a companhia. Desse modo, quantos mais passageiros solicitarem tal atendimento maiores os custos que comporão o pacote de despesas de um voo e da companhia como um todo. Portanto, exigir um serviço para poder embarcar primeiro simplesmente para obter a vantagem de desembarcar antes dos demais é um crime contra a economia popular.
São mais de trinta anos que uso a cadeira de rodas e ficaria muito feliz com a possibilidade de voltar a andar. Ainda espero um milagre. Por isso, considero um crime que determinadas pessoas usem essa condição para levar vantagem, colocando em risco conquistas de acessibilidade de toda a sociedade. Qual é o milagre na esperteza? Não há.
A esperteza é torpe e fomenta as desigualdades, porque alguns espertos geram custos para todos os cidadãos.
O que fazer nas organizações? Criar controles para se precaver dos espertos? São custos. Não tenho as respostas, mas acredito que…
…o verdadeiro milagre deveria ser a capacidade de viver em harmonia, independentemente da condição física ou social numa convergência de valores como integridade, honestidade, justiça e lealdade.
Só assim para sermos humanos, porque senão os espertos além de andar poderiam aprender a voar!
Fonte:https://www.portalpadom.com.br/vivendo-na-dimensao-do-milagre-pr-andre-lepre/
Moacir Rauber
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