Moacir Rauber
É muito comum nós nos expressarmos dizendo, Não tenho nada a ver com isso, frente a mais diferentes situações, inclusive sobre ter ou não animais de estimação, por exemplo. Gosto muito de bichos, de todas as espécies. Gosto tanto deles que não os tenho. Prefiro-os livres. Caso tivesse uma casa com um quintal enorme ou ainda vivesse num sítio como na minha infância ou juventude, certamente, não me privaria do seu convívio. Mas esta não é a minha realidade. Vivo num apartamento na cidade. Tenho vizinho para cima, para baixo e para os lados. No meu prédio, a maioria dos meus vizinhos têm cachorros e também gatos. Outros têm iguanas, lagartos, aranhas e papagaios. Qualquer um poderia, tranquilamente, dizer que eu não tenho nada a ver com isso. Em parte é verdade. Somente em parte.
Hoje pela manhã saí de casa, em minha cadeira de rodas, rumo a um compromisso que teria às 11h. Não estava atrasado, mas também não tinha muita folga. Estava bem a tempo. Locomovia-me com rapidez pelas calçadas da cidade. Faltavam ainda uns 300 metros para chegar ao local do meu compromisso. Cruzava com um pedestre e outro. Desviei de uma senhora distraída. As mãos, como de costume, impulsionavam a cadeira com agilidade e segurança. De repente senti algo quente e úmido na mão esquerda. Logo senti um cheiro horrível. Olhei para a minha mão e ela estava toda suja de m… (isso mesmo, cocô de cachorro). Fiquei desolado. Minha cara expressava isso com clareza. Trazia tão somente minha pasta no colo e nela não tinha nenhum lenço ou papel absorvente. Levantei as mãos e deixei a cadeira correr por si só um pouquinho, enquanto mentalmente xingava o dono do cachorro. Quando a cadeira parou eu olhava ao redor para ver se encontrava algo para limpar a mão e a roda da cadeira. Não vi nada. Fiquei ali, meio atordoado, quando fui abordado por um senhor que estava sentado num carro estacionado ao lado, que me disse: Você quer alguns guardanapos? Eu tenho aqui no carro… Ofereceu-me ele gentilmente. Agradeci sinceramente. Limpei, joguei os guardanapos sujos numa lixeira que havia ao lado, agradeci mais uma vez e segui meu caminho. Cheguei ao local do compromisso e fui diretamente ao banheiro para lavar minhas mãos.
A situação expressa que nós sempre temos a ver com isso, seja o que for, principalmente quando não são respeitadas as boas regras de convívio. Quanto ao dono do cachorro sequer vou comentar. O meu comentário se reporta a nossa omissão quando nos deparamos com situações em que vemos que algo está mal, mas não fazemos nada, porque não temos nada a ver com isso. Certamente quando o cachorro fez o dito serviço na calçada alguém viu, mas ninguém se dignou a chamar a atenção do dono, porque afinal não tinha nada a ver com isso. Quem viu, fez que não viu e pisou ao lado. Não digo isso colocando-me acima do bem e do mal. Digo isso porque sofri as consequências da minha própria omissão. Algumas semanas passadas estava eu, num final de tarde, em frente ao meu prédio, observando o movimento da rua. Gente circulando, conversando, tomando seu chimarrão e levando seus animais de estimação para passear. Cada um é livre para tê-los. Com isso realmente não temos nada a ver. Entretanto, num dado momento vejo um vizinho do prédio com seu cachorro enorme na praça do outro lado da rua. O cachorro estica a coleira e se aproxima de uma árvore na pracinha em frente. Ajeita-se, faz toda a movimentação que antecede o momento e executa o serviço. O dono olha para um lado e para outro, espera seu cachorro terminar o que havia começado e vai embora, deixando a obra a céu aberto. Eu olhei, fiquei indignado, mas não fiz nada, afinal eu não tinha nada a ver com isso!Por que iria comprar uma briga com o vizinho por nada, uma vez que eu não pisaria naquele local? Porém, com essa situação eu tinha a ver sim. Minha obrigação era ter alertado ao dono sem educação. Minha indignação deveria ter feito com que eu saísse do meu comodismo e apontasse para o dono do cachorro que ele deveria tomar as providências. Isso porque se eu tivesse tomado a atitude que deveria ter tomado teria evitado que alguém pudesse ter sofrido as mesmas consequências que sofri, por que assim como eu, alguém se omitiu, simplesmente por acreditar que aquilo que não nos atinge diretamente não tem nada a ver conosco.
A situação relatada no início irritou-me em si, mas por outro lado frustrou-me muito mais como pessoa. Ela fez com que eu tomasse consciência de que é muito fácil criticar as omissões dos outros quando sofremos as consequências, assim como fez com que eu me desse conta das inúmeras vezes que nos omitimos. A situação me é emblemática, pois sempre falo da interdependência que se tem no meio organizacional e também social, porque das nossas atitudes e omissões ocorrem outras indiretamente a ela ligadas, mas pelas quais também somos responsáveis.
Por isso a pergunta: do que estamos nos omitindo porque aparentemente não temos nada a ver com isso?